quarta-feira, 19 de março de 2014

Por rever

Eu corria, eu que nem sei correr, corria sem ter tempo para pôr as devidas vírgulas, eu que tenho um problema em largar as vírgulas. O Tiago Bettencourt a cantar aos meus ouvidos, a arrastar a voz nos meus phones e já lá iam alguns kilómetros muito kilómetros kilómetros a mais para quem não gosta de correr e ainda assim pareciam-me tão poucos, poucos para quem precisaria de correr duas maratonas seguidas e morrer e levantar-se e correr outra com o suor a correr-lhe pela cara numa promessa de nunca mais ser bela, nunca mais ver beleza, numa promessa de continuar a correr para sempre para que nunca parasse de transpirar e o Tiago sem H nunca parasse de cantar, para que ele nunca saísse dos Toranja, para que os Toranja musicassem a minha corrida para sempre. Estou bêbada e drogada, eu que não bebo nem me drogo, mas hoje bebi e droguei-me, não sei com o quê pois estou bêbada e drogada, com as veias cheias, pronta a rebentar explodir sujar tudo, as paredes, os carros, o chão da rua, os cabelos das crianças que passam, como uma daquelas baterias que vai aumentando o ritmo até um refrão explosivo que é como se gozasse, com a excepção de que eu não gozo, não hoje que estou completamente dormente, ausente, anestesiada. Ponto final.
Isto não tem um fim. Tem sempre, sempre tem. Mas não um bom fim. Daqueles que realmente se parece com um fim. Daqueles que se anunciam a si mesmos como se fossem fins. Não, aqui não temos disso. Vendi todos. Então o único que tenho para oferecer, é abrupto.
Todos os fins são abruptos.

domingo, 16 de março de 2014

é bizarro que esteja sol

guardaria todos os lugares do mundo para te acolher. e no entanto não guardo.
sonharia todas as letras para as juntar num texto só teu. e sonho. e junto. mas não entrego.
ficaria olhando para ti, sorrindo, derretendo com os pensamentos mais divertidos, e não tenho coragem de ficar.

é bizarro que hoje esteja sol e os rios continuem a andar no mesmo sentido. é ridículo que ainda haja pessoas para quem é só mais um dia, um dia em que se começa a manhã comendo chocapic e sendo feliz, seguindo para uma volta na Lagoa em que o mundo parece sempre mais bonito. é absurdo que haja pessoas a apaixonarem-se hoje e darem o primeiro beijo enquanto entrelaçam mãos.

é idiota que queira plagiar-te só para estar mais perto. para tentar ser um terço de genial.

não subas ao altar se não queres. não subas só porque já vais no meio da escada.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Radio Silence

E se todas as ondas congelassem? Se cada movimento parasse agora? Se as respirações cessassem e ninguém fosse embora? Se quem está indo embora, deixasse de ir para ficar. Os meus olhos não secariam e as lentes não ficariam coladas, ardendo sem que pudesse fazer nada.O tempo continuaria a andar, mas todos nós ficaríamos petrificados naquele instante. Por muitos instantes. Tantos, que nos cansaríamos. Desesperaríamos e depois nos cansaríamos de desesperar. Ficaríamos incomodados, depois incomodados por estar incomodados e depois fartos do incômodo, querendo reagir. Aí seria primavera. Cada coisa, cada célula despontaria lentamente, no seu tempo, redescobrindo para onde quereria ir. Girassóis iriam para o sol. Um deles, mais invernoso, se transformaria numa tulipa e pediria por água. Eu desentorpeceria os músculos lentamente, me apercebendo deles um por um e me espreguiçaria com calma, decidindo cada passo como se todos fossem uma opção. Aperceber-me-ia que tinha esquecido tudo e escolheria, provavelmente dar-te a mão, intuitivamente, para me ajudares a recuperar aquela memória velha de colocar toscamente um pé à frente do outro. Quereria correr e cairia. Involuntariamente, riria.
Como eu, existiríamos todos por um tempo, nessa tentativa de descobrir o que fazer com tantos membros e apenas um tronco. O mundo estaria como era, nós não. O mundo não estaria como era.

Talvez fosse isso que acontecesse se todos os rádios do mundo deixassem de funcionar. Ou talvez todos os aviões colidissem. Ou talvez já ninguém ligue realmente para rádios. Ou talvez chovessem cartas de reclamação. De qualquer forma, o rádio precisa de perder a frequência de vez em quando.
Custar-nos-ia se assim não fosse.


sábado, 8 de março de 2014

As asas que pousam em pestanas que aqui são cílios que são onde as asas pousam



As suas asas se prendem nas minhas pestanas. As suas asas se prendem nas minhas pestanas e eu fico sem ar. Quero te beijar e você está fazendo peso nas minhas pestanas me obrigando a semicerrar os olhos. Quero te ver. De novo e mais uma vez. Quero saber o que colore as asas de uma borboleta. Você sabe o que colore as suas asas?

Quando tinha dois anos, tinha um quadro na parede do meu quarto que dizia “Meu anjo da guarda, minha companhia, guarda a minha alma de noite e de dia.” E a minha mãe lia-o para mim. Para que eu repetisse antes de dormir. E eu repetia, muito compenetrada: “Meu anjo da guarda, minha campanila, guarda a minha lama no meio da rua.”
E para mim tinha todo o sentido do mundo. Precisava muito mais de alguém que guardasse a minha lama, do que alguém que guardasse a minha alma. É que com a lama eu fazia algo, saltava com as minhas botas de borracha nas poças. Poças essas no meio da rua. Com a alma, sabia lá... Nunca tinha servido de muito. E companhia... eu tinha dois anos, estava sempre acompanhada. Achava bem mais útil uma campainha (campanila) do que uma companhia. A campainha eu usava para chamar as primas do Nanã (meu urso de peluche) para o chá que fazia na sala de jantar, mas elas eram pequenas e precisavam de ajuda para subir às cadeiras.
E eu tinha um sino em forma de anjo. Então adorava aquele poeminha. Era uma ode ao chá das cinco e ao saltar das poças. Só aos 5 anos entendi que não eram esses os escritos, ao aprender a ler. Me desiludi. Não sei porque a minha mãe nunca me corrigiu. Talvez porque também ela achasse a minha versão muito melhor e necessária.

E é por isso que as suas asas se prendem nas minhas pestanas e eu já não me assusto. Deixo que a sua tinta escorra para dentro dos meus olhos e que eles fiquem amarelos, laranja, verdes e azuis. Deixo que tudo isso aconteça até que eu faça cinco anos e tenha de descobrir que talvez não fosse nada disso. Mas não me importo. Porque a minha lama está muito bem guardada no meio da rua e isso sim, é o que importa.

sexta-feira, 7 de março de 2014

392

Havia 392 mãos no meu pescoço dizendo-me para onde tinha de ir. 392 traços no chão mostrando-me o que tinha de fazer. 392 brilhantes coloridos caídos sobre a minha pele por distração. 392 cidades a chamarem por mim. Existiam arrepios na minha espinha, calafrios obrigando-me a escolher, dúvidas a colarem-me ao chão. 
E tu, parado num canto, assistindo a tudo. Rodei a cabeça, vi mais uma vez o verdadeiro castanho dos teus olhos e saltei. 
Desapareceram as mãos, os traços no chão e os brilhantes coloridos.
Era simples, simples como o castanho que acabara de ver. Só tinha que fechar os olhos com força uma última vez e abri-los para sempre. 
A escolha estava feita.